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Do Yoga da Voz ao Poetnocanto

De um yoga para a voz e de uma poética para o canto

Alba Lirio*

Considerando o estágio atual da banalização da vida e de suas manifestações, tragédia da qual não escapam culturas fundadas e preservadas pela transmissão oral, por exemplo, vale trazer à luz a tradição milenar do Yoga, que inclui em sua epistemologia uma filosofia que sustenta tanto a ciência quanto a arte na cultura indiana, com atuações e aplicações em diversos campos do saber e de interesse cada vez maior e universal.

Por mero exercício de natureza comparativa, vamos colocar frente a frente o que o mundo ocidental, especialmente, absorveu como noção e modus operandi do Yoga e o que na cultura indiana está contido nesta palavra-chave, síntese, guarda-chuva, emblema, passaporte ou qualquer outra metáfora que se queira empregar ao pensar um conjunto de saberes e fazeres capazes de criar, afirmar, restaurar, e sustentar a vida dos seres humanos na Terra.

Yoga, que em tradução literal quer dizer unir, nos desdobramentos da sua significação, é uma maneira de pensar e de estar no mundo. E é também uma ciência e uma arte que lançam mão de um conjunto de disciplinas teóricas e práticas cujo fim seria reunir tudo aquilo, todo objeto, todo outro, que se encontre separado da unidade, de um Todo, que vai de um estado somente alcançado por intermédio da meditação ou de um produto do imaginário resultante na ideia de um Um criador e de outros, criaturas. Neste contexto bastante amplo, cujo campo no ocidente, principalmente, abriu-se para a saúde e tratamento terapêuticos, o Yoga pode ser entendido também como um agente liberador de todo e qualquer obstáculo a uma vida prazerosa, ou, se quisermos operar de acordo com os conceitos que nos oferece o pensamento indiano, à iluminação pela via da transcendência da matéria e da ilusão.

O que nos diz o pensamento místico da Índia

O sétimo e último estágio de uma estrutura fenomenológica da nossa experiência e dimensionamento da existência é o de natureza mística. Esta esfera pode ser identificada como o sétimo céu (satyaloka) da música e o sétimo (patala) inferno da anti-música. (Ritwik Sanyal in Philosophy of Music, 1987). Místico aí pode ser definido como um caminho subjetivo em busca de uma verdade que só pode ser verificada pela experiência que por sua vez se dá numa possível transcendência do ego.

Na base da filosofia contida nos livros sagrados da Índia (os Vedas, cerca de 2000 a.c.)) está a trindade divina (dev-deus), no caso o Um em três, que são Brahma, o criador, Vishnu, o conservador, e Shiva, o destruidor, ou como preferimos, o transformador.

O termo Yoga, nasce junto com Shiva, esse deus associado à transformação, e que, portanto, e pela lógica, se constitui na própria noção de movimento. Shiva só deixa sua posição imóvel de meditador para tornar-se bailarino. E ainda aí, está em movimento contemplativo, é Um com a dança, é a própria Dança. Por tantos “superpoderes” Shiva é incensado, em grande parte da Índia como o como o primeiro Yogin.

Sendo yoga aquilo cuja meta é a reunião, como pode neste caminho estar contida a noção de movimento e transformação que do ponto de vista do sentido parece antagônica à meta original? A teoria sobre a relação Shiva-Shakti (princípios masculino e feminino) sobre a qual não nos deteremos aqui, pode nos informar sobre isso.

Trata-se, brevemente, porém, no ambiente originário das práticas meditativas e nomeadas no ocidente como espirituais, da natureza própria da energia vital, de seu caráter impermanente e pulsional. Resistir, insistir, permanecer e transformar é o desafio que se apresenta ao aspirante à via de crescimento e evolução no domínio da natureza humana.

Uma noção que decorre desse pensamento vasto e abrangente é a de Som. E para ele é dedicado o Sama Veda, um tomo dos Vedas, o mais amplo, antigo e importante conjunto de livros sagrados dos hindus. E dos conhecimentos e instruções de práticas contidas no Sama Veda surge o Nada e o Shabda Yoga, respectivamente o yoga da vibração (incluindo os sons inaudíveis) e do Som (Shabda). Cultivar a música como um ato poético e uma experiência estética oriunda das práticas de Nada Yoga pode ser um dos meios efetivos para o alcance do bem-estar e da cura. Para alguns filósofos indianos o som ocupa lugar de destaque como sinônimo de fala.

A noção que prevalece no Ocidente pelo menos é a de que a voz enquanto fenômeno biológico e metafísico, somente se inscreve como fala, no advento da noção de linguagem e suas funções, como ato da vontade e da inteligência humanas.

Assim, nomeamos o fenômeno de voz para explicar não apenas a “condição na qual o sujeito falante supõe poder controlar a própria fala e comunicar alguma mensagem cujo sentido já foi formado a priori’, ou o veículo que intermedeia uma possível relação dialética entre o sujeito e o mundo exterior (objeto), no campo dos significantes e da produção do imaginário.

Por sua natureza impalpável, quase indefinível e inominável, a voz é um significante que se oferece como uma espécie de cordeiro sacrificial para o engendramento de um sem número de metáforas, constituindo-se, assim, como o insumo imaterial de maior valor nas elaborações advindas da construção do psiquismo humano.

E é deste ponto que podemos retomar a questão do Yoga da Voz, elegendo a Índia como fórum para um curto desenvolvimento da ideia. Podemos, então, pensar que o Yoga da Voz vai tratar desta voz que não está presente no campo dos significantes como tal, mas em potência e em estado de espera, imersa por suposição no campo do som, à espreita, em escuta, e na condição então de objeto, encontrando-se em absoluta inter-relação com o eu e a serviço de uma eventual emergência do sujeito. A voz, portanto, não teria uma existência de per si, nos colocando na posição de médiuns, digamos assim. E é na condição de médiuns que corremos o risco de nos confundirmos com a voz no processo de construção da subjetividade. Neste lugar somos não uma única, mas muitas vozes, muitos sons, muitos timbres, muitas emoções.

É no processo de expansão da atuação desse sujeito em construção que comparece uma instância nova para a experimentação da voz, situada nos interstícios do percurso entre o emissor e o receptor, da mensagem que sai de um silêncio, rompe o campo sonoro físico ao mesmo tempo em que convoca o som, atos de natureza orgânica e até este momento involuntária, e a partir daí, convoca o desejo, a intenção, e a memória para juntas inaugurarem o ato da escuta.

Culturas Vocais, um campo de estudo para uma pedagogia antropológica da voz cantada e uma “po-étnica do canto”

O que irá advir das ideias anteriormente apresentadas é a contribuição que nos vem oferecendo as culturas vocais ao longo da história e do tempo para a liberação da expressão vocal, para a compreensão do pensamento mágico em sua relação com as manifestações poéticas e espirituais dos indivíduos e grupos sociais, como fontes de inspiração, e subsídio para uma pedagogia e uma psicologia da que se manifeste favoravelmente tanto na construção do conhecimento, quanto nos processos de criação artística e de cura intermediados pela voz, pela fala e pelo canto.

Neste momento, então, convocamos o corpo para participar desse movimento de construção e de desconstrução daquele “médium” que se relaciona com a noção de sujeito para que se realize o ato primordial e fundamental da Escuta.

É a hora e a vez de outra tríade sutil: a Conexão (pela via da escuta), o Transe, e a Transmissão (pela via da voz), que defino aqui com o sábio verso de Arnaldo Antunes: Agora, aqui, ninguém precisa de si. E a comunicação pode se dar satisfatoriamente.

O caminho da escuta é de grande riqueza e promete tesouros valiosos a quem o escolher e nele se lançar como um explorador com mente de bebê e coração de buda, ou vice-versa. Fazer essa trajetória a partir da fonte é trilhar a linha do tempo mergulhados no grande mistério do Som e da existência humana do qual só se emerge para respirar quando surgem, como reservas ecológicas para citar José Miguel Wisnik, a voz, a língua e as culturas vocais.

A Índia, pátria da noção de transcendência, cultura em que a construção do eu está para ser fundada e em cujo léxico não há nada que lembre sujeito ou mesmo inconsciente, sucumbida inexoravelmente no pensamento dominante e dominador da unidade no coletivo, quando comparece no desfile das culturas vocais, revela ao estudioso, uma voz inconfundível, incomparável, inimitável, afetada 100% pela cultura, e a afetando, e instalada num corpo e em costumes que não poderiam se manifestar de outra forma se não fosse por intermédio dela.

Neste momento, podemos sair da Índia e ir em busca de outras culturas vocais tradicionais que atuam na relação com o mundo existente para além de suas fronteiras, como operárias na construção de uma cosmovisão genuíno e possuidoras de imaginário genuíno, rico e matricial.

Estamos falando, por exemplo, dos xamãs indígenas de diferentes partes do mundo, bem como os devotos da religiosidade de matriz africana, e outros. É no seio da cultura que podemos “escutar” nos espaços vazios e nos interstícios entre o som e o tom, entre o tom e o canto, ou ainda entre o silêncio e o som, entre o fonema e a palavra, entre o canto e a canção, ou seja, nos espaços-entre.

A Escola Vox Mundi, que dirijo no Brasil, selecionou para estudo as manifestações culturais vocais das culturas indígena e afro-brasileira e, em alguma medida, a cultura que nasce da espiritualidade budista tibetana.

Esta pesquisa resulta ser do interesse de uma vasta gama de estudiosos, tendo sido realizada em campo, devidamente documentada e organizada de tal forma a se constituir como um esboço metodológico para a pratica de artistas, profissionais da área de saúde, e pessoas interessadas nos processos de crescimento humano.

Quando canto, que canta?

Quando a linguagem comparece a confusão se apresenta, mas não se estabelece. Logo se organiza, faz e desfaz, sempre em busca do que não se pode encontrar fora dela. O cenário, promissor ou desalentador, é sempre ilusório, fantasioso. Em compensação, e por não haver outra saída, é a própria linguagem que nos oferece a saída para a imaginação, esse campo de inesgotável riqueza, onde se dão as narrativas dramáticas, com suas dramaturgias subjetivas, seus personagens, línguas, cantos, danças e invenções, tudo abrigado sob o imenso guarda-chuva da cultura.

É neste imaginário capaz de criar mundos, filosofias, crenças e nomear deuses que se encontram os chamados cantos de tradição (presentes em culturas matriciais) e as ragas indianas, por exemplo, transmitidos oralmente de geração em geração, de mestre para discípulo. Este processo de transmissão oral de conteúdos atemporais, que são atualizados por intermédios de práticas e rituais, só é possível de ser sustentado por um sentimento primordial a que se dá o nome de Devoção, um conceito que na Índia tem um sentido diferente daquele que lhe é atribuído pelas religiões cristãs, pelo menos. De raiz sânscrita – Dev – evoca a noção de estrutura vertical de um campo energético vital onde em lugar privilegiado de sutilização dessa energia estariam os deuses emanadores do bem estar e da felicidade dos homens. Daí divino, daí devir, como meta, como lugar a ser perseguido e alcançado por intermédio da relação de mestre com um chela (Devoto) seja qual for a sua crença, escola, sua prática, a sua técnica ou a sua arte.

E se um atributo natural de um ente Dev é a não-dualidade, ou seja, viver em união com o Todo, a experiência deste estado é oferecida a todos por natureza, mas só é revelada aos “Dev-otos”, que renovam diariamente os votos de confiança em algum processo sistematizado que conduza à dissolução das fronteiras entre os mundos, entre as culturas, entre os corpos, os sons e as vozes, tornando-se médiuns a serviço dos deuses.

A palavra Devoção tem em Bhakti seu correspondente sânscrito cooptado pelo sistema de Rasa, que se refere às emoções provocadas pela obra de arte. Bhakti para alguns teóricos da arte seria mais uma rasa, aquela relacionada ao estado de paz, silêncio, graça, que só pode ser transmitido pelo artista-yogin ao rasika (o apreciador esteta), concluindo, assim, o processo criativo.

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